Os Guarani
Guarani: Tradição, Resiliência e Harmonia com a Natureza
Sustentabilidade Cultural
A tradição Guarani integra saberes ancestrais com práticas sustentáveis no cuidado com a terra.
Espiritualidade e Ecologia
A conexão entre natureza e espiritualidade é central no modo de vida Guarani.
Espiritualidade e Ecologia
Mesmo diante de desafios históricos, os Guarani mantêm vivos seus valores e cultura.
A nação Guarani faz parte do grupo étnico Tupi e se divide nos subgrupos Xiripa, Mbya e Kaiowa. Compunham, na época da chegada dos europeus na América, uma população estimada em mais de um milhão de indígenas distribuídos por um território que abrangia desde o extremo Norte da Amazônia até a Bacia do Prata, ao Sul do continente. Cerca de 220 mil Guarani permanecem vivendo ainda hoje na Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil.
O Brasil possui uma imensa diversidade étnica e linguística, estando entre as maiores do mundo. São 305 povos indígenas. Pelo menos 274 línguas são faladas pelos membros destas sociedades, com mais de 30 famílias linguísticas diferentes. A população indígena no Brasil, segundo o IBGE (2022), alcança aproximadamente 1.700.000 índios e aproximadamente 34 mil vivendo no Rio Grande do Sul (RS).
Atualmente, os Guarani constituem a maioria da população indígena do litoral sul e sudeste do país, vivendo em cerca de cem aldeias situadas junto a Mata Atlântica, no Mato Grosso, Amazônia e entre os estados do RS e Espírito Santo. No RS, existem cerca de 65 aldeias. A situação fundiária atual é de 50 Terras Indígenas, sendo 29 destas terras da etnia Guarani (FUNAI, 2024).
O direito dos povos indígenas e às especificidades culturais está presente, por exemplo, na Constituição Brasileira (1988), na Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (promulgada em 2004), na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2008) e no Estatuto dos Povos Indígenas (2009).
O histórico dessa etnia revela modos de vida tradicionalmente integrados aos ecossistemas florestais, através de um manejo sustentável que permite a coleta de alimentos, medicamentos, espécies para uso em cerimônias e para a construção das casas, confecção de utensílios, artesanato, instrumentos e adornos, respeitando a capacidade de suporte dos ambientes e a troca de saberes e experiências com parceiros dispostos a recuperar e conservar a biodiversidade.
O modo de ser e viver Guarani está intimamente conectado com a existência na aldeia, a teko’a, espaço onde vivem coletivamente e que precisa de elementos naturais como água “viva” (nascente ou curso d’água) e terra apropriada para plantio e floresta, que possibilitem a saúde física, emocional, mental e espiritual. A aldeia, teko’a, é o espaço onde é possível a realização do tekó, do bem viver, sistema/forma de vida, a identidade e a cultura Guarani.
Os saberes e práticas tradicionais são essenciais à vida Mbya Guarani. As atividades precisam ser integradas ao cotidiano comunitário, contribuído para a concretização de elementos fundamentais ao modo de vida dessa etnia, como elucidado pelo cacique Cirilo: “Tapé é o caminho que nossos antepassados faziam e estamos continuando. Para seguir o caminho tem que ter opy, roça, tem que trazer mais planta tradicional, mais frutas”.
Falas guarani foram revelando que para eles o significado de plantar ou de cuidar de árvores vai além de uma atividade de reflorestamento ou de proteger a natureza como algo externo ao humano. A consciência da relação entre a degradação ambiental e a degradação cultural e étnica, bem como a ligação entre a recuperação ambiental e a recuperação cultural e étnica, reflete uma visão em que ambiente e cultura não estão separados, e sim integrados. As observações também mostraram um modo de viver que reflete o entrelaçamento entre cultura e ambiente, através de uma relação viva entre seus hábitos/saberes e as plantas, os animais, a água, o sol, o fogo, a natureza como um todo.
Os locais onde as aldeias estão estabelecidas são os mesmos onde eles permaneciam e circulavam, há milhares de anos, constituindo espaços sagrados para este povo originário. A teko’a não se reduz ao espaço físico, mas constitui a dimensão onde se manifestam todos os costumes e tradições, permitindo a continuidade da cultura e a própria vida:
“Teko’a é vida, é modo de ser, de manter os costumes […] é modo de viver!
É na aldeia, com a família que se aprende a nossa língua,
nela se aprende a viver segundo os costumes […]
ser um bom caçador, um bom pescador, um bom artesão, um bom cacique […]
respeitando o dom, a missão de cada índio” (Cacique José Cirilo, 2007).
A organização social da aldeia é constituída por uma família extensa, com vários núcleos familiares, uma liderança religiosa: o karaí (pajé, ancião, sábio) ou a kunhã-karaí (mulher pajé) e política: o cacique, que representa os indígenas, lidera reuniões e atividades e faz a mediação com a sociedade não indígena. As casas são dispostas em um formato de rede, ligadas por caminhos e rodeadas por roçados (roças familiares). A Opy constitui um elemento essencial da teko’a, que além de ser uma casa de oração, celebração e conexão espiritual, é também um centro de cura e a escola tradicional Guarani.
Atualmente, algumas aldeias possuem escolas estaduais, com professores indígenas e não indígenas, em um processo de construção de uma instituição diferenciada, bilíngue e intercultural, que possa contribuir para a revitalização da cultura e aprendizagem, especialmente, da língua portuguesa.
A oralidade é um elemento de grande importância na educação e na manutenção da cultura Guarani, constituindo um sistema cultural de escuta, respeito pela palavra, respeito aos mais velhos e ao grupo em geral. A profundidade da palavra e do gesto destes indígenas é traduzida por termos como “falar com o coração, escutar com o coração e aprender com o coração”.
A arte é uma expressão deste modo de ser, fazendo parte da religiosidade, da ritualística, da educação e da economia deste grupo étnico, constituindo ainda uma forma de afirmação da sua identidade. Através da arte eles manifestam sua relação espiritual com todos os seres, criando caminhos de conexão com ancestrais e divindades. O artesanato, a música e a dança possuem um sentido espiritual, criativo, curativo e educacional. As letras das músicas apresentam profundos significados, relacionados com espiritualidade, ancestralidade e ecologia. Os instrumentos e as diferenças de tons de voz possibilitam um ritmo que permite a entrega em um estado de conexão, gratidão e celebração.
O modo de ser Guarani também se manifesta em uma visão diferenciada do espaço e do tempo. O espaço não é dividido em fronteiras políticas, sendo a mobilidade (oguatá) muito importante para esta etnia, fazendo parte historicamente dos seus movimentos migratórios e contribuindo para a sua sustentabilidade cultural, através das constantes visitas entre as aldeias, perpetuando trocas de saberes, sementes, mudas, alimentos e materiais. O tempo é vivido de um modo intimamente relacionado com a natureza, com os ciclos estacionais e lunares. Tempo e espaço estão relacionados, pois a mobilidade se dá em função das estações e dos ciclos naturais, em busca de alimentos e de fibras naturais, de acordo com a sua disponibilidade em cada momento e em cada local.
A economia tradicional guarani tem como base a reciprocidade, fundamentada em princípios de solidariedade e de generosidade, em um sistema caracterizado pela troca (poraró), partilha e ajuda mútua. O trabalho é realizado com alegria, o “trabalhar com o coração”, seguindo um ritmo próprio, individual e coletivo, com divisões de tarefas e mutirões (potirõ). A forma de divisão do trabalho está relacionada com o dom de cada indivíduo, isto é, a sua missão pessoal, suas habilidades e aptidões.
O artesanato constitui uma importante fonte de renda e de valorização cultural deste povo, além de proporcionar a confecção de utensílios para uso na aldeia. Com o uso de fibras naturais, sementes, cipós e diferentes tipos de madeira, são confeccionados cestos, balaios, adornos e esculturas. A confecção do artesanato também faz parte de um ritual, que vai desde o pedido de autorização para a retirada da planta e acompanha toda a construção, geralmente em estados de oração e de conexão silenciosa. As esculturas em forma de animais são confeccionadas com madeiras de árvores consideradas sagradas, sendo que cada animal apresenta uma simbologia específica, trazendo qualidades destes seres. Os adornos, geralmente feitos com sementes, possuem função de proteção.
A produção de alimentos segue métodos tradicionais de cultivo, criação de galinhas (urú), pesca (pirá), caça e coleta de frutos nativos (pindó). As áreas de roças (kokue), geralmente próximas às casas, apresentam grande diversidade de espécies, como milho (avaxi), feijão (kumandá), mandioca (mandio), amendoim (manduví), batata doce (jety), melancia (xanjau, kanjau) e abóbora/moranga (poranga), entremeadas pelo plantio de frutíferas e de erva mate (ka’a), no estilo de agrofloresta ou quintais agroflorestais. Além de técnicas ecológicas, como a diversificação e a rotação de culturas, possuem uma longa trajetória de armazenamento e troca de sementes agrícolas tradicionais.
Atualmente, com todos os processos de transgenia e de uso de agroquímicos da agricultura convencional, estes sistemas de cultivo consistem em uma grande lição para a humanidade.
Outro exemplo de sustentabilidade é arquitetura Guarani, harmoniosamente integrada à paisagem, concretizada através de processos coletivos de construção, utilizando materiais locais e com técnicas tradicionais de importância simbólica e cultural, também relacionadas com seu modo de vida e transmitidas através das gerações.
Mas apesar de toda importância cultural, estes indígenas têm enfrentado grandes dificuldades para manter seu modo de vida. Através de conversas com os caciques e karaí de aldeias guarani do RS, pode ser percebido que a experiência das missões jesuíticas ao longo dos séculos deixou marcas profundas na organização social dos Guarani, ainda hoje. As guerras do bandeirantismo, Guaranítica, a da conquista das missões e a do Paraguai provocaram, nos séculos XVII a XIX, verdadeiros massacres. Os Mbya, de acordo com relatos de Seu Adolfo (karaí, que viveu na aldeia da Varzinha-RS e em SC), interpretam esses fatos como um cataclismo que atingiu seu povo, assim como anteriormente sobreviveram a incêndios e dilúvios que também terminaram com o mundo.
Além disso, a mecanização da agricultura com a monocultura da soja, por exemplo, desde a década de 1970, vem degradando vastas extensões de matas e contaminando os rios com agrotóxicos, isolando ou confinando mais uma vez os Mbya.
Ao longo das últimas décadas, os Mbya passaram a buscar a demarcação de áreas e limitar o avanço da sociedade regional, na tentativa de manter a sua forma de vida tradicional (nhanderekó), sem abrir mão da territorialidade livre que os caracteriza.
A cultura Guarani possui uma riqueza de elementos pouco conhecidos e valorizados, os quais podem contribuir para um enriquecimento cultural renovador da nossa sociedade, com a sua visão espiritual, ambiental, sua forma de relação com os elementos naturais e sobrenaturais e entre as pessoas, e com seus valores de reciprocidade, respeito e solidariedade.