Vida e Cultura Guarani
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    Vida e Cultura Guarani

    A nação Guarani faz parte do grupo étnico Tupi e se divide nos subgrupos Xiripá, Mbya e Kaiowa. Compunham, na época da Conquista da América pelos europeus, uma população estimada em um milhão em meio de índios distribuídos por um território que abrangia desde o extremo Norte da Amazônia até a Bacia do Prata, ao Sul do continente. Cerca de 220 mil índios guarani permanecem vivendo ainda hoje na Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil - onde a população Guarani alcança cerca de 50 mil índios.

    A população que se autodeclara indígena no Brasil segundo o IBGE (2010) alcança 817.963 índios, 9,2% desta população está no Sul do país e 32.989 índios residem no Rio Grande do Sul (RS). Atualmente, os Guarani constituem a maior população indígena do litoral sul e sudeste do país, vivendo em cerca de cem aldeias situadas junto a Mata Atlântica, entre os estados do RS e Espírito Santo. No RS a situação fundiária atual é de 48 terras indígenas, sendo 21 destas terras Guarani (FUNAI, 2015).

    O histórico dessa etnia revela modos de vida tradicionalmente integrados aos ecossistemas florestais, através de um manejo sustentável que permite a coleta de alimentos, medicamentos, espécies para uso em cerimônias e para a construção das casas, confecção de utensílios, instrumentos e adornos, respeitando a capacidade de suporte dos ambientes e a troca de saberes e experiências com parceiros dispostos a recuperar e conservar a biodiversidade.

    O modo de ser e viver Guarani está intimamente conectado com a existência na aldeia, a teko’a, espaço onde vivem coletivamente e que precisa de elementos naturais como água “viva” (nascente ou curso d’água), terra apropriada para plantio e floresta, para possibilitar a saúde física, emocional, mental e espiritual. A aldeia, teko’a, é o espaço onde é possível a realização do tekó, o sistema de leis, a ordem, a identidade e a cultura Guarani.

    Para os guarani o significado de plantar ou de cuidar de árvores vai além de uma atividade de reflorestamento ou de proteger a natureza como algo externo ao humano. A consciência da relação entre a degradação ambiental e a degradação cultural e étnica, bem como a ligação entre a recuperação ambiental e a recuperação cultural e étnica, reflete uma visão em que ambiente e cultura não estão separados, e sim integrados, um modo de viver que reflete o entrelaçamento entre cultura e ambiente, através de uma relação viva entre seus hábitos/saberes e as plantas, os animais, a água, o sol, o fogo, a natureza como um todo.

    A organização social da aldeia é constituída por uma família extensa, com vários núcleos familiares, uma liderança religiosa: o karaí (pajé, ancião, sábio) ou a cunhã-karaí (mulher pajé) e política: o cacique, que representa os indígenas, lidera reuniões e atividades e faz a mediação com a sociedade não indígena. As casas são dispostas em um formato de rede, ligadas por caminhos e rodeadas por roçados (roças familiares). A Opy constitui um elemento essencial da teko’a, que além de ser uma casa de oração, celebração e conexão espiritual, é também um centro de cura e a escola tradicional Guarani.

    Atualmente algumas aldeias possuem escolas estaduais, com professores indígenas e não indígenas, em um processo de construção de uma instituição diferenciada, bilíngue e intercultural, que possa contribuir para a revitalização da cultura e da aprendizagem, especialmente, da língua portuguesa. Os processos educacionais tradicionais Guarani apresentam alguns desafios para o ensino formal como algumas características essenciais de liberdade, afetividade, ludicidade e respeito ao tempo de aprendizagem de cada indivíduo.

    A oralidade é um elemento de grande importância na educação e na manutenção da cultura Guarani, constituindo um sistema cultural de escuta, respeito pela palavra e respeito aos mais velhos e ao grupo em geral. A profundidade da palavra e do gesto destes indígenas é traduzida por termos como “falar com o coração, escutar com o coração e aprender com o coração”.

    O modo de ser Guarani também se manifesta em uma visão diferenciada do espaço e do tempo. O espaço não é dividido em fronteiras políticas, sendo a mobilidade (oguatá) muito importante para esta etnia. O tempo é vivido de um modo intimamente relacionado com a natureza, com os ciclos estacionais e lunares. Tempo e espaço estão relacionados, pois a mobilidade se dá em função das estações e dos ciclos naturais, em busca de alimentos e de elementos naturais, de acordo com a sua disponibilidade em cada momento e em cada local.

    A economia tradicional guarani tem como base a reciprocidade, fundamentada em princípios de solidariedade e de generosidade, em um sistema caracterizado pela troca (poraró), partilha e ajuda mútua. O trabalho é realizado com alegria, o “trabalhar com o coração”, seguindo um ritmo próprio, individual e coletivo, com divisões de tarefas e mutirões (potirõ). A forma de divisão do trabalho está relacionada com o dom de cada indivíduo, isto é, a sua missão pessoal, com suas habilidades e aptidões.

    A produção de alimentos segue métodos tradicionais de cultivo, criação de galinhas (urú), pesca (pirá), caça e coleta de frutos nativos (pindó). As áreas de roças (kokue), geralmente próximas às casas, apresentam grande diversidade de espécies, como milho (avaxi), mandioca (mandio), amendoim (manduí), batata doce (jety), melancia (xanjau) e abóbora, entremeadas pelo plantio de frutíferas e de erva mate, no estilo de agrofloresta ou quintais agroflorestais. Além de técnicas ecológicas, como a diversificação e a rotação de culturas, possuem uma longa trajetória de armazenamento e troca de sementes agrícolas tradicionais.

    Apesar de toda importância e beleza cultural, estes indígenas têm enfrentado grandes dificuldades para manter seu modo de vida. Através de conversas com os caciques e karaí de aldeias guarani do RS, pode ser percebido que a experiência das missões jesuíticas ao longo dos séculos deixou marcas profundas na organização social dos Guarani ainda hoje. As guerras do bandeirantismo, a Guaranítica, a da conquista das missões e a do Paraguai provocaram, nos séculos XVII a XIX, verdadeiros massacres. Os Mbya, de acordo com relatos, interpretam esses fatos como um cataclismo que atingiu seu povo, assim como anteriormente sobreviveram a incêndios e dilúvios que também terminaram com o mundo.

    Além disso, a mecanização da agricultura com a monocultura da soja na década de 1970 degradou vastas extensões de matas e contaminou os rios com agrotóxicos, isolando ou confinando mais uma vez os Mbya. Ao longo das últimas décadas, os Mbya perceberam que não havia mais para onde fugir e passaram a buscar a demarcação de áreas e limitar o avanço da sociedade regional, na tentativa de manter a sua forma de vida tradicional (nhanderekó), sem abrir mão da territorialidade livre que os caracteriza.

    As áreas demarcadas também proporcionam a existência de áreas ambientalmente conservadas, pois o modo de vida tradicional guarani compreende a importante conexão entre Ecologia e Espiritualidade.

    “Nhanderú disse que o nosso corpo é uma terra.

    Tomar chá é como plantar uma muda no corpo.      

    Nosso corpo é a terra e o mundo.

    Pra proteger o filho, Nhanderú deixou muita coisa.                    

    Nhanderú ficou muitos anos trabalhando,

    deixou tudo pros Guarani, faz uns 600 anos.                              

    Ele mora na Terra, no outro lado do mundo.

    Ele deixou seu filho, o sol, Kuaray.                                

    Primeiro Nhanderú fez limpeza na terra. Era tudo coberto de água.

    Quando ele veio, secou [...]

    Onde tinha terra estragada, ele arrumou tudo.

    Primeiro não tinha nenhum pé de árvore [...]

    Ele não plantou tudo, só uma parte, começou com uma lavoura, com vários tipos de plantas [...] pra crescer árvore, brotos, fazer flor, tem que ter chuva [...]

    Esperou uns doze dias e aí a chuva veio. Nhanderú pediu pro pai maior as sementes e jogou as sementes na terra. O pai maior criou pássaros pra espalhar as sementes. Eles comem os frutos e levam as sementes”

    (Cacique José, Aldeia Campo Molhado)

    A cultura Guarani possui uma riqueza de elementos pouco conhecidos e valorizados, os quais podem contribuir para um enriquecimento cultural renovador da nossa sociedade, com a sua visão espiritual, ambiental, sua forma de relação com os elementos naturais e sobrenaturais e entre as pessoas, e com seus valores de reciprocidade, respeito e solidariedade.